Para entendermos sobre a visão do divórcio no Mundo Antigo, veremos primeiro como se estruturava a família de modo geral.
No Império Babilônico, bem como em países orientais vizinhos, as famílias eram patriarcais. Esse grupo era formado do pai, suas mulheres, seus filhos, e por vezes das famílias de seus filhos, com noras, genros e netos. O pai era o chefe, o maior administrador dos negócios e proventos do grupo. Quando este morria, raramente se passava essa função à mãe. Quem administrava era o primogênito que já ia assumindo paulatinamente as funções do patriarca com o avanço de sua velhice. As propriedades e negócios da família chamava-se no Código de Hamurabi de "bens" ou "haveres da casa paterna". Ao se referir às propriedades de alguém, o código sempre usava o termo "bens da casa paterna", que podiam ser terras, casas, gado, escravos, utensílios, pontos de explorações e metais preciosos como ouro, cobre e prata.
Essa estrutura era desfavorável ao enriquecimento individual dos membros dessas sociedades. Os investimentos geravam riquezas do grupo, era por isso que eram acirradas as disputas pelo direito de primogenitura, onde as esposas se esforçavam para ter filhos homens que seriam candidatos à administração ou auxiliares nos negócios da família.
Quando o primogênito se mostrava incapaz ou rebelde para fazer a administração dos negócios do grupo, o pai cedia a liderança ao filho chamado "o primeiro da sua atenção". Outros filhos homens com habilidades para os negócios recebiam uma parcela dos bens na partilha do patrimônio, aumentando a sua possibilidade de investir e de ter bens próprios ( bens adquiridos por si mesmo, por seu trabalho pessoal ou pelos seus próprios meios) e formar novo clã.
No Código de Hamurabi há uma descrição detalhada dedicada às partilhas fixadas para a mãe, filhos não casados, filhos de concubinas mantendo o princípio de igualdades de partes. Mas isso não era observado nas prática, principalmente nas comunidades tribais, sendo que o primogênito geralmente recebia a maior e melhor parte e a administração. Os outros filhos geralmente vendiam a sua parte para ele.
Nesse contexto geralmente as filhas e mesmo as mães ficavam prejudicadas. Após a morte do pai, os filhos mais velhos costumavam desagregar a família roubando os mais novos e as irmãs depois de casadas, tornando-se chefes de novas comunidades. As segundas esposas dos patriarcas também podiam ser afastadas dos direitos de partilha e herança com seus filhos, formando gerações de deserdados que buscavam sustento nas cidades como funcionários reais subalternos, artesãos, nos exércitos e como empregados e trabalhadores autônomos.
O casamento e o divórcio
Os pais combinavam a união dos noivos, e muitas vezes, era pedido um acordo entre as partes contratantes. Na ocasião do casamento, era pago o preço, ou o dote. O pagamento era, algumas vezes, realizado por meio de serviços prestados.
No mundo antigo o casamento era visto como uma aliança ou contrato financeiro. Os noivos muitas das vezes se conheciam no dia da cerimônia.
Nessa sociedade as mulheres sempre tinham menos privilégios.
As adúlteras tinham a punição mais severa que os maridos infiéis. Se comprovada, e sem o perdão do marido, geralmente eram condenadas à morte junto com seus amantes.
A simples suspeita do marido de adultério não podia ser motivo de carta de repúdio.
Mulheres podiam receber carta de repúdio no início do casamento. Por essas condições era de um esforço grande por parte da mulher manter-se casada, aceitando inclusive a admissão de concubinas no seio familiar para dividir as obrigações sexuais.
No império de Hamurabi mulher legítima, era casada por contrato:
art.128; "Se um homem tomou uma esposa e não redigiu seu contrato, essa mulher não é sua esposa." . Esta, pelo Código, herda após a morte de seu marido o seu dote e uma parte igual à dos filhos. Na prática, as viúvas sem filhos perdiam tudo se não fossem resgatadas com outro casamento ou pela lei do levirato.
Veremos a seguir as leis prescritas no Código de Hamurabi sobre o casamento e o divórcio:
Condições para a condenação da mulher infiel:
1. Infidelidade feminina comprovada sem perdão do marido:
"art. 129. Se a esposa de um homem foi surpreendida dormindo com outro homem, eles os amarrarão e os jogarão n'água. Se o esposo perdoa sua esposa, o rei, também perdoará o seu servo."
2. Infidelidade feminina comprovada por mulher com provisões deixadas pelo marido:
"art. 133. Se um homem afastou-se secretamente e em sua casa há o que comer, sua esposa guardará sua casa e cuidará de si mesma. Ela não entrará na casa de outro homem. Se essa mulher não cuidou de si mesma e entrou na casa de outro homem, comprovarão isso e a lançarão n'água."
Observação: Suspeita de traição
Em caso de suspeita de traição da esposa havia duas situações citadas no código:
"art.131 Se a esposa de um homem, seu marido a acusou, mas não foi surpreendida com outro homem, ela pronunciará juramento diante de deus e voltará para sua casa."
"art.132. Se contra a esposa de um homem foi levantado o dedo por causa de outro homem, mas ela não foi surpreendida dormindo com outro homem: para seu esposo ela mergulhará no rio."
"Mergulhar no rio" é uma pena usada em alguns casos de acusações graves não provadas. Se a pessoa morresse afogada é porque era realmente culpada. Mas se saísse ilesa era inocente, mas o acusador podia levar uma pena. Temos o caso do artigo 2 do Capítulo 1:
"Se um homem lançou contra outro homem uma acusação de feitiçaria, mas não pode comprovar, aquele contra quem foi lançada a acusação será mergulhado no rio. Se o rio o dominar, seu acusador tomará para si a sua casa. Se o rio o purificar e ele sair ileso, aquele que lançou a acusação de feitiçaria será morto e o que mergulhou no rio tomará para si a casa de seu acusador."
Condições para a não condenação da mulher infiel:
3. Infidelidade feminina comprovada por mulher sem provisões deixadas pelo marido:
"art. 134 Se um homem afastou-se secretamente de sua casa e nela não há o que comer, sua esposa poderá entrar na casa de outro. Essa mulher não tem nenhuma culpa."
"art. 135 Se um homem afastou-se secretamente e em sua casa não há o que comer e, antes de sua volta, sua esposa entrou na casa de outro e gerou filhos; e depois disto, seu marido voltou e chegou à cidade, essa mulher voltará para o primeiro marido e os filhos ficarão com o pai."
Em observação aos artigos 134 e 135, não é dado ao homem nessas condições o direito de dar carta de divórcio à essa mulher.
Condições para o divórcio segundo o Código Hamurabi:
As cartas de repúdio ou divórcio eram apresentadas às famílias das mulheres ou diante de tribunais e eram cedidas nas seguintes condições:
4. Abandono do homem da cidade
"art. 136 Se um homem abandonou sua cidade e fugiu e depois de sua saída sua esposa entrou na casa de um outro, se este homem voltou e quer retomar sua esposa, a esposa do fugitivo não retornará a seu marido, porque ele desprezou a cidade e fugiu."
5. A mulher é sacerdotisa
As sacerdotisas tinham autorização para realizar em seu próprio nome vários atos jurídicos, podiam adquirir e investir em bens. Elas administravam seus próprios negócios, compravam bens imobiliários e praticavam a usura. Podiam ter, portanto, certa independência financeira e condições de se manter caso os maridos pedissem carta de divórcio. Elas só podiam se casar de novo após a criação dos filhos.
"art. Se um homem decidiu repudiar uma sacerdotisa, que lhe gerou filhos, devolverá a essa mulher o seu dote e dar-lhe-á a metade do campo, do pomar e dos bens móveis e ela educará os filhos. Depois que houver educado os seus filhos, de tudo que foi deixado para os seus filhos dar-lhe-á a parte correspondente à de um herdeiro e o homem de seu coração poderá tomá-la por esposa."
6. A mulher é estéril
A mais dolorosa de todas as condições. O marido de mulher estéril podia pela lei exigir carta de divórcio, abandoná-la ou devolvê-la à família caso ela não se submetesse a uma segunda mulher. A falta de herdeiros era uma ameaça ao patrimônio familiar.
" art. 138 Se um homem quer abandonar sua primeira esposa, que não lhe gerou filhos, dar-lhe-á a prata correspondente, isto é, o preço que o pai do noivo pagou ao pai da noiva e restituir-lhe-á o dote que trouxe de seu pai. Só então poderá abandoná-la."
"art. 139 Se o pai do noivo nada pagou e não houve dote, dar-lhe-á uma mina de prata como indenização do repúdio."
"art. 140 Se o homem pertence à classe média, dar-lhe-á, apenas, um terço de uma mina de prata."
7. A mulher acumulou bens, decidiu ir embora, negligenciando a casa e o marido
"art. 141 Se a esposa de um homem, que mora na casa de seu marido, decidiu ir embora e criou para si um pecúlio, dilapidou sua casa, negligenciou seu marido, comprovarão isso contra ela. Se seu marido declarou que deseja repudiá-la , ele poderá repudiá-la. Ele não lhe dará coisa alguma, nem para viagem, nem como indenização de separação. Se seu marido declarou que não deseja repudiá-la, seu marido poderá tomar outra mulher e ela morará como escrava na casa de seu marido."
8. Aversão por infidelidade do homem
Esse caso é analisado nos tribunais para testar a conduta da mulher em casa. Deve ser comprovada a infidelidade e humilhação do marido apesar da postura correta da esposa com as suas obrigações de mulher e dona de casa.
"art. 142 Se uma mulher tomou aversão a seu marido e disse-lhe: 'Tu não terás relações comigo', seu caso será examinado em seu distrito. Se ela for irrepreensível e não tiver falta e seu esposo for um saidor e a tiver humilhado muito, essa mulher não tem culpa, ela tomará o seu dote e irá para acasa de seu pai."
"art. 143 Se ela não é irrepreensível, mas é saidora, dilapida a sua casa e desonra seu marido, jogarão essa mulher n'água."
Condições não aceitas para dar a carta de divórcio
9. Doença da esposa
"art.148 Se um homem tomou uma esposa, e esta foi acometida por moléstia contagiosa, e ,se ele decidiu esposar outra, ele poderá, mas não poderá repudiar a esposa doente. Ela morará na casa que construíram e ele a sustentará enquanto viver."
"art. 149 Se essa mulher não concordou em morar na casa de seu marido, ele devolver-lhe-á o dote que trouxe da casa do pai e ela irá embora."
A mulher adúltera era punida muito mais severamente do que o marido infiel. O divórcio a pedido da esposa era difícil.
D'us odeia o repúdio no casamento conforme descrito em Malaquias 2. Na época as mulheres nessa condição ficavam desesperadas e se derramavam nos templos: "Ainda fazeis isto: cobris o altar do Senhor de lágrimas e de gemidos, de sorte que Ele já não olha para a oferta, nem a aceita com prazer da vossa mão." v.13
Em tempos de frieza espiritual, os homens eram infiéis e quebravam a aliança do casamento após vários anos de convivência. Como não se encaixavam nas condições de pedir a carta de divórcio citada em Deuteronômio 24.1 eles enviavam as esposas de volta para as suas famílias ou simplesmente as despediam ou abandonavam.
"Porque o Senhor foi testemunha da aliança entre ti e a mulher da tua mocidade, com a qual tu foste desleal, sendo ela a tua companheira e a mulher da sua mocidade."v.14
כִּי-שָׂנֵא שַׁלַּחפ "Porque odeio o repúdio." Malaquias 2.6, onde o verbo שַׁלַּח é um verbo que significa enviar, mandar, remeter, afastar, despedir, expulsar, libertar, repudiar.
Essa não é a mesma palavra usada em Deuteronômio 24.1 "Quando um homem casa com uma mulher ou a possui, se ela o desagrada (ou) se tem evidência de má conduta sexual por parte dela*, ele lhe escreverá uma carta de divórcio e a colocará em sua mão, assim liberando-a de sua casa. Quando ela assim deixar a sua casa, ela pode ir e casar com outro homem."
O termo aqui é סֵפֶר כְּרִיתֻת carta de divórcio, e ela só podia ser concedida caso houvesse estranheza entre o casal após o matrimônio pois na época os casamentos eram arranjados também em Israel e os noivos só se conheciam no dia da cerimônia.
כִּי-יִקַּח אִישׁ אִשָּׁה, וּבְעָלָהּ; וְהָיָה אִם-לֹא תִמְצָא-חֵן בְּעֵינָיו, כִּי-מָצָא בָהּ עֶרְוַת דָּבָר--וְכָתַב לָהּ סֵפֶר כְּרִיתֻת וְנָתַן בְּיָדָהּ, וְשִׁלְּחָהּ מִבֵּיתוֹ
Portanto, a carta de divórcio não era uma instituição de D'us, era apenas uma permissão caso não houvesse identificação entre o casal no início do casamento. Era na verdade uma anulação da cerimônia. Nesse caso, a família da noiva era convocada junto com os anciãos, e os motivos do pedido da separação eram colocados. Após o seu retorno para casa, ela sendo jovem, tinha condições de se casar de novo.O divórcio entre esse casal era irreversível.
Cartas de divórcio não costumavam ser dadas após o nascimento do primeiro filho, ainda mais homem. Conforme já citamos, cartas de divórcio não eram cedidas por causa da velhice da mulher, nem por causa de doença.
*"evidência de má conduta sexual por parte dela": não era virgem, contrário ao estabelecido no contrato.
Figura egípcia:
1.Antiquité égyptienne du musée du Louvre. Musée du Louvre, Département des Antiquités égyptiennes, E 15592
A seguir um vídeo sobre o Código de Hamurabi, com leitura de algumas leis de todos os tópicos. Vale a pena ouvir.
Se um homem é capaz de conquistar a alma de sua esposa dia após dia de modo a incentivá-la a preservar o seu casamento, ele será capaz de conquistar a alma de pelo menos um errante para a leitura e obediência da Torá.
Bibliografia:
Código de Hamurabi - Código de Manu (Livros oitavo e Nono) - Lei das XXII Tábuas. Supervisão Editorial Jair Lot Vieira - EDIPRO, 1ª edição, 1994, SP.
1.A Torá Viva - O Pentateuco e as Haftarot - Anotado por Rabino Aryeh Kaplan- Editora Maayanot;
2.Tehilim - Salmos Tradutores: Adolph Wasserman & Chaim Szwertszarf; McKlausen Editora; RJ.
2.Tehilim - Salmos Tradutores: Adolph Wasserman & Chaim Szwertszarf; McKlausen Editora; RJ.
3.Dicionário Português Hebraico e Hebraico Português - Abraham Hatzamri e Shoshana More-Hatzamri - ed. Sêfer
4.Dicionário Hebraico-Português&Aramaico-Português, Sinodal Vozes, 4ª edição, 1994.